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domingo, 27 de julho de 2014

O Cuidado ao Falar e a Religião Pura



Se há algo interessante em Tiago como escritor, é justamente a concisão dos escritos de sabedoria. Daí a inviabilidade em encontrar neste um tratado a respeito de soteriologia, hamartialogia, e demais ramos da Teologia, mas isto está muito longe de uma omissão quanto a estes assuntos. Não vou abordar à miúde o conceito de pecado em Tiago, isto é matéria para um próximo post, mas antecipo que para este a língua figura como uma das maiores fontes de pecado e como critério da religião verdadeira. 

Outro ponto a ser brevemente discutido aqui neste espaço é a questão da verdadeira religiosidade. Atualmente o termo religião tem sido marginalizado ao extremo e tem se adotado a religiosidade em seu lugar. No meio evangélico tem sido comum associar aquele com formalismo religioso, sendo que Tiago coloca o mesmo de forma positiva. Tais fatores fazem com que ministros e demais estudiosos da Bíblia se debrucem sobre o assunto, é o que com ajuda de Deus farei no presente estudo, a começar pelo conceito de religião, e progredindo até o cuidado no falar. 

O CONCEITO DE RELIGIÃO

Não é de hoje que o meio cristão, e particularmente o evangélico neo pentecostal, marginaliza o termo religião, mas o léxico deixa claro que tal não procede visto que no dicionário Religião é: 

Culto rendido à divindade. Fé; convicções religiosas, crença: a religião transforma o indivíduo. Doutrina religiosa: religião cristã. Tendência para crer em um ente supremo. Acatamento às coisas santas. Fig. Coisa a que se vota respeito

Observe que aqui a religião se define ora pela prática de culto, pelo serviço religioso em si, pela crença em uma doutrina, mas jamais pelo formalismo em si. O Michaelis amplia o conceito para temor a Deus, tudo o que é considerado obrigação moral, ou dever sagrado indeclinável, podendo também ser o sentimento consciente de dependência ou submissão que liga a criatura humana ao Criador. Portanto em si a religião não é negativa. 

Face aos conceitos expostos posso afirmar que aquele que pretende combater à religião, seja ele "cristão", ateu, evangélico, em si termina por ser um religioso no sentido prático da questão. Alguns julgam a respeito de si, considerando que não sejam religiosos, na verdade a religiosidade dele se deslocou para sua doutrina, para suas convicções religiosas, teológicas, doutrinárias, suas metodologias de crescimento e mesmo seu trabalho secular, e sua política religiosa são sua religião. 

Minha intenção ao citar o dicionário é demonstrar que a religião não é algo negativo em si e resgatar o conceito de Tillich desenvolve a respeito do termo, sendo o estado no qual o indivíduo se preocupa de maneira absoluta, podendo se manifestar no indivíduo e nas instituições sociais e nacionais. Logo, a religião no sentido básico e mais abrangente da palavra é a preocupação suprema (ultimate concern), manifesta em todas as funções criativas do espírito, bem como na esfera moral na qualidade de seriedade incondicional que esta esfera exige

Em outras palavras o indivíduo que se devota à causa contra o formalismo acaba ele mesmo desenvolvendo um tipo de religião, e precisa atentar para que esta prática religiosa não se torne diabólica, vã e destituída de autenticidade bíblica e existencial, o mesmo pode ser dito do militante político, do homem dedicando ao seu trabalho, do professor, e dos novos ateus, que entendem que ao promover o ateísmo estão de alguma forma curando a humanidade de alguma forma de doença. 

Isto posto passarei a tecer algumas considerações a respeito da religião no sentido bíblico. 

RELIGIÃO NO SENTIDO BÍBLICO DO TERMO

A primeira colocação que julgo necessária de se fazer é que existe diferença entre religião e formalismo religioso. Logo é incompreensível do ponto de vista exegético, hermenêutico e lexical o emprego pejorativo, ou melhor, o processo de pejoração do vocábulo religião. Não é demais repetir e reforçar a ideia de que no dicionário a religião é a expressão de fé, de convicção, os  ritos, e o sentimento de dependência absoluta do homem em relação à divindade. 

Estes mesmo conceitos aparecem de forma implícita nas duas menções positivas que a Bíblia faz á religião, dentre elas destaco um discurso que Paulo fez em defesa própria veja:
Todos os judeus sabem como tenho vivido desde pequeno, tanto em minha terra natal como em Jerusalém. Eles me conhecem há muito tempo e podem testemunhar, se quiserem, que, como fariseu, vivi de acordo com a seita mais severa da nossa religião.

Agora, estou sendo julgado por causa da minha esperança no que Deus prometeu aos nossos antepassados. Esta é a promessa que as nossas doze tribos esperam que se cumpra, cultuando a Deus com fervor, dia e noite. É por causa desta esperança, ó rei, que estou sendo acusado pelos judeus (At 26. 4 - 7 NVI). 
Necessário se faz destacar que o farisaísmo que Paulo chama aqui de αιρεσιν (hairesin), de onde vem o termo heresia, aqui definido como partidarismo. É muito comum a associação entre fariseus e religião, quando na verdade o judaísmo sim é retratado no texto como religião enquanto os formalistas como partidários dentro de um espectro religioso mais amplo. 

De acordo com o texto em apreço a religião judaica constitui-se como rito e culto que são alimentados pela firme esperança, que por sua vez tem sua matriz na promessa que Deus fez à Abraão. Em outras palavras o rito, se alimenta da fé, e pretende ser uma expressão da esperança. Sem esta a religião perde o seu fervor, deixando de ser o sentimento de dependência do absoluto. Fato é que a única menção negativa que a Bíblia faz à religião θρησκεια (threskeia) é a crítica do culto aos anjos (Cl 2. 18). 

Os fariseus não eram meros religiosos, na verdade nunca foram chamados disto por Cristo. Eles são frequentemente chamados de hipócritas, é verdade. Um fator geralmente ignorando é que estes eram, ao mesmo tempo que uma seita rigorosa, um partido político, No texto em que Cristo os condena veementemente ele se refere a eles como υποκριται (hipokritai). 
Hipócritas! Bem profetizou Isaías acerca de vocês, dizendo: Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão me adoram; seus ensinamentos não passam de regras ensinadas por homens (Mt 15 . 7- 9 NVI). 
Neste texto o vocábulo υποκριται é empregado para definir a contradição entre o louvor de lábios e o coração distante de Deus. Uma marca dos fariseus era burlar os mandamentos de Deus com vistas à satisfação pessoal, assim eles se congratulavam entre si por serem supostamente obedientes a Deus quando na verdade eram os maiores violadores da lei e da aliança. Exemplo? Dizimavam o cominho e a hortelã, mas negligenciavam a justiça e a misericórdia (Mt 23. 23), negando a lei e os profetas com isto. 

É neste ponto que Jesus e Tiago se encontram, uma vez que para ambos a religião que despreza o sofrimento do outro não é legítima em si. Mas qual é o fundamento da religião pura. A fim de ser fiel ao contexto da carta de Tiago, afirmo que o Novo Nascimento e a prática da Palavra são o fundamento da Religião Pura (θρησκεια καθαρα και αμιαντος [threskeia kathara kai amiantos]). 

A RELIGIÃO PURA E IMACULADA

Como uma prática religiosa pode proceder de corações contaminados pelo pecado? Este é o grande problema do homem, conforme colocado por Cristo no Evangelho, o coração, visto que dele procedem: os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos e as calúnias (Mt 15. 19). A verdade da Bíblia é que o coração humano é mau desde a infância (Gn 6. 5). Como este problema é resolvido? 

Tiago reconhece que a concupiscência humana seduz o homem da mesma forma que o caçador, ou o pescador seduzem a caça, ou a pesca (aqui), mas ele igualmente reconhece que Deus regenera os crentes por meio da Palavra, a fim de que os mesmos sejam novas criaturas (aqui), uma vez gerados pela palavra da verdade estes tem o seu coração purificado para ouvir, receber e praticar a Palavra da verdade. 

A religião pura começa com o ouvir, aqui mais do que ouvir, na verdade atender, obedecer. Este apelo é muito comum nos Evangelhos (Mt 11. 15; 13. 9, 43; Mc 4. 9; Lc 8. 8; 14. 35) e nas cartas às sete igrejas  da Ásia (Ap 2. 7, 11, 17, 29; 3. 6, 13, 22). Tiago fala da prontidão para ouvir e do retardo para a ira. considerando que o contexto fala do ouvir a Palavra, bem como da prática da mesma, creio que o apelo aqui seja referente à ira que algum crente viesse a sentir ao ser confrontado pela Palavra. 

A cata de Tiago não é de fácil digestão, ela fala de preconceito social (Tg 2. 1 - 12), de prática amorosa (Tg 2. 14 - 26), do uso da língua (Tg 1. 26, 27; 3. 1 - 12), do amor ao mundo e dos desejos, bem como do apelo ao ter em detrimento do ser (Tg 4. 1 - 9), do julgamento (Tg 4. 11, 12), da falibilidade dos projetos humanos (Tg 4. 13 - 16). Creio que é esta palavra, que em sucessivos aspectos ressoa o ensino de Cristo e dos profetas. Não são palavras que agradam ao público em geral, muito menos ao meio evangélico atual, mas creio ser elas o alvo do apelo ao ouvir feito por Tiago. O segundo apelo é à aceitação do conteúdo ouvido. 

Portanto, livrem-se de toda impureza moral e da maldade que prevalece, e aceitem humildemente a palavra implantada em vocês, a qual é poderosa para salvá-los (Tg 1. 21 NVI). Palavra aqui é o conteúdo da presente carta, que não pode ser assimilado sem que se lance fora a impureza moral, ρυπαριαν
(ryparian), e o acúmulo de malícia, περισσειαν κακιας (perissean kakaias). Isto, porque tanto a uma como a outra constituem empecilhos ao progresso da Palavra que foi implantada. 

O termo empregado pelo autor (εμφυτον [emphiton]) denota que a palavra é enxertada, ao invés de fruto de estudo, o que indica a conexão entre a obra de regeneração falada nos versos anteriores da carta (Tg 1. 18). Para todos os efeitos esta mesma palavra é poderosa para salvar as almas dos que a ouvem. Seguindo a esta fala vem o apelo à prática do conteúdo da carta. 

Como escritor Tiago é o que mais faz uso de palavras exclusivas no Novo Testamento. Quando observamos o texto em que este autor fala da prática da palavra, no lugar do célebre vocábulo ergon (εργον), o mesmo emprega termos como ποιητης (poieetees) e ποιηται (poietai), para exprimir a prática da Palavra de Deus. Todavia esta prática se dá mediante observação. 

Mas o homem que observa atentamente a lei perfeita que traz a liberdade, e persevera na prática dessa lei, não esquecendo o que ouviu mas praticando-o, será feliz naquilo que fizer (Tg 1. 25 NVI). O termo para atentar aqui é παρακυψας (parakupsas) empregado para o ato de espiar, ou para designar alguém que se inclina para o lado a fim de contemplar um objeto. Sirácida fala de tal atitude para com a sabedoria
Feliz o homem que se ocupa da sabedoria e que raciocina com inteligência, que reflete em seu coração, nos caminhos da sabedoria, e medita em seus segredos. Sai atrás dela como um caçador, põe-se á espreita em seus caminhos, inclina-se para olhar por suas janelas, escuta às suas portas. Detém-se junto à sua casa, fixa o prego nas paredes (Eclo 14. 20 - 24 Bíblia de Jerusalém). 
A expressão inclina-se para olhar por suas janelas, é tradução que a versão LXX emprega para παρακυψας (parakupsas), indicando de fato o trabalho de um espia, sendo que neste caso alguém que persegue a sabedoria. Prática da Palavra não se dissocia do estudo sistemático. De forma alguma! Quanto a língua retornarei a este assunto, do qual já falei (aqui). Jesus disse que a boca fala da abundância do que há no coração (Mt 12. 34, 35), daí que um coração que foi gerado pela palavra da verdade é comedido no falar, ou fala de coisas excelentes. 

Quanto a assistir aos órfãos e às viúvas em suas necessidades, este é um mandamento que se alinha tanto com a sabedoria quanto com a lei e os profetas (Dt 14. 29; Jó 31. 16, 17, 21; Is 1. 17, 23) e é comum ao crente que realmente pratica a palavra. É a base da justiça dos profetas (aqui). 

Em Cristo, Marcelo Medeiros. 

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