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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Os dez mandamentos do Senhor


Após sucessivas experiências do povo com Deus, o Senhor estabelece uma aliança, um pacto, um acordo com o povo de Israel. Lemos no texto bíblico que Em Mara o Senhor lhes deu leis e ordenanças, e os colocou à prova, dizendo-lhes: Se vocês derem atenção ao Senhor, ao seu Deus e fizerem o que ele aprova, se derem ouvidos aos seus mandamentos e obedecerem a todos os seus decretos, não trarei sobre vocês nenhuma das doenças que eu trouxe sobre os egípcios, pois eu sou o Senhor que os cura (Ex 15. 25, 26 NVI). Se avançarmos na leitura do texto de Êxodo na íntegra, veremos a ocorrência de mandamentos e mais mandamentos que Deus vai entregando ao povo a fim de que o mesmo sob orientação de sua palavra desfrute o bem do Senhor. Neste estudo pretendo fazer uma breve exegese do texto em que se baseia a lição da Escola Bíblica Dominical, visando uma maior compreensão do que sejam mandamentos no sentido judaico do termo, bem como o contexto em que os mesmos foram entregues. Pretendo ainda explorar o sentido de cada mandamento e as implicações do mesmo no relacionamento do crente com a lei.
 
I) O fundamento hermenêutico e exegético
 
No texto bíblico supra observamos a ocorrência de três termos: 1) חֹ֥ק (Hoq), que pode ser ordenança, limite, decreto, estatuto; 2) מִשְׁפָּ֖ט (mispath), o sentido aqui pode ser o de ordenança, mas também o de julgamento; 3) מִצְוֹתָ֔יו (mitsvat, ou mitsvain), usualmente empregado para mandamentos. O termo pode significar uma orientação , tal como as que Deus deu a Abraão. É neste sentido que se afirma: Abraão obedeceu à minha voz, e guardou o meu mandado [מִצְוֹתַ֖י], os meus preceitos, os meus estatutos, e as minhas leis (Gn 26. 5 ARCF). O mesmo se aplica em relação à recusa do povo em atender as orientações do Senhor quando á coleta do maná, e a reserva do mesmo para o dia de sábado (Ex 16. 28).
De fundamental importância para o nosso estudo é a compreensão de que os mandamentos não são dados visando serem um fardo para o povo de Israel. O Senhor mesmo o diz: Quem dera que eles tivessem tal coração que me temessem, e guardassem todos os meus mandamentos todos os dias, para que bem lhes fosse a eles e a seus filhos para sempre (Dt 5. 29 ARCF). Aqui fica implícito que a razão de ser do mandamento: o bem do povo como da posteridade do mesmo, mas o argumento não se esgota aqui. Não bastasse o bem do povo Deus ainda diz:
Porque este mandamento, que hoje te ordeno, não te é encoberto, e tampouco está longe de ti. Não está nos céus, para dizeres: Quem subirá por nós aos céus, que no-lo traga, e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Nem tampouco está além do mar, para dizeres: Quem passará por nós além do mar, para que no-lo traga, e no-lo faça ouvir, para que o cumpramos? Porque esta palavra está mui perto de ti, na tua boca, e no teu coração, para a cumprires.
Vês aqui, hoje te tenho proposto a vida e o bem, e a morte e o mal; Porquanto te ordeno hoje que ames ao Senhor teu Deus, que andes nos seus caminhos, e que guardes os seus mandamentos, e os seus estatutos, e os seus juízos, para que vivas, e te multipliques, e o Senhor teu Deus te abençoe na terra a qual entras a possuir
(Dt 30. 11 - 16 ARCF). 
O texto em apreço nos coloca diante do fato de que não existe nos mandamentos divinos uma única ordenança que se constitua como um jugo para o homem. Por meio do preceito Deus coloca a sua vontade de forma acessível ao povo. O texto nos coloca diante de um dilema, uma vez que por meio de uma leitura parcial temos aprendido a crer, de forma errônea que a lei se constituía um fardo pesado para o povo, quando este texto nos coloca diante de uma outra realidade, a de que o mandamento nem é difícil, e nem pesado.
Este pensamento não é compatível, por exemplo, com as declarações de Davi, que afirma: Eu me apressarei e não hesitarei em obedecer aos teus mandamentos (Sl 119. 60 NVI).  Eu amo os teus mandamentos mais do que o ouro, mais do que o ouro puro (Sl 119. 127 NVI), e: Dirige-me pelo caminho dos teus mandamentos, pois nele encontro satisfação (Sl 119. 35 NVI). Estas declarações não são compatíveis com o judaísmo rabínico posterior, que desenvolveu o conceito de justiça do direito. Não Davi sabe que é pobre e necessitado (Sl 40. 17; 86. 1). A palavra pobre do hebraico עָנִ֖י (ani), assim como o grego πτωχοι (ptochós), indica o homem totalmente confiante em Deus, logo, dependente do favor divino, que sabe que precisa contar com a graça do mesmo.
Se há algo que tem me tomado inteiramente em teologia é a compreensão de que a lei de Deus somente pode ser obedecida por corações voltados para Deus, e que o amam inteiramente. Não foi sem razão que antes de pedir ao povo que guardasse seus mandamentos, o Senhor lhes ordenou que o amassem de todo o coração (Dt 6. 5), indicando com isto que tudo o que precisavam para obedecer aos mandamentos e leis era um coração circuncidado.
Davi percebe isto como ninguém, e com os olhos em sua total pobreza ele clama a Deus: Ensina-me o teu caminho, Senhor, para que eu ande na tua verdade; dá-me um coração inteiramente fiel, para que eu tema o teu nome (Sl 88. 11 NVI). Ele sabe que para andar na verdade de Deus, ele precisa ser ensinado pelo próprio. Mais do que isto, seu coração precisa ser renovado para que possa amar a Deus e temer o seu nome. Isto é consciência da dependência de Deus, que é o fundamento da doutrina da graça ainda no Antigo Testamento.
O problema no qual a lei vai se esbarrar é o coração humano, que se mostra mau e predisposto a não fazer aquilo que Deus de fato quer. Paulo vai expressar esta verdade nos seguintes termos:
Quem vive segundo a carne tem a mente voltada para o que a carne deseja; [...] a mentalidade da carne é inimiga de Deus porque não se submete à lei de Deus, nem pode fazê-lo (Rm 8. 5 - 7 NVI). 
Esta é a verdadeira razão da impotência humana no que tange à guarda da lei, visto que não exista ser humana que não possa afirmar como Paulo: nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo (Rm 7. 18, 19 NVI). Mas na medida em que o homem recebe um novo coração e com este o Espírito de Deus em sua vida ele é capacitado por Deus para a obediência dos mandamentos (Ez 36. 26 - 31).
Aqui há de se compreender que a obediência da lei se estende ao cristão pelo fato de a mesma ser eterna e de Jesus ter afirmado que não veio para revogar a mesma, mas para a levar à plenitude. Com isto, o mesmo Cristo afirmou que nem um til, ou iota (י), as menores letras do alfabeto hebraico perderiam a sua validade. Mas ele também deixou claro que o cumprimento da lei se estende para além da relação legalista dos escribas e fariseus. O cumprimento da lei, por parte do crente demanda a superação de todo justiça aparente, sendo possível somente para homens que sabem que dependem da graça do Senhor, para que este os conceda um coração puro e disposto a obedecer em tudo (Mt 5. 3, 9, 17 - 20). Contudo, esta obediência não se trata de desempenho no cumprimento da mesmo visando a nossa salvação. A lei não salva ninguém.
Uma última leitura exegética da lei, de extrema importância para a nossa compreensão a respeito do relacionamento entre o crente e lei, é o contexto aliancista. Com isto queremos dizer que a despeito do caráter eterno da lei, ela foi dada em meio a uma aliança que Deus estabeleceu com Israel. Ouçam, ó Israel, os decretos e as ordenanças que hoje lhes estou anunciando. Aprendam-nos e tenham o cuidado de cumpri-los. O Senhor, o nosso Deus, fez conosco uma aliança em Horebe (Dt 5. 1, 2 NVI). Estritamente sob este aspecto o crente está desobrigado da lei, no sentido de que esta não mais é a base da aliança que Deus fez conosco em Cristo (Jr 31. 31 - 35).
 
II) Os dez mandamentos
 
A lei não se resume aos dez mandamentos. Sabe-se que estes são, na verdade, um resumo da lei, que na verdade é um código de seiscentos e dezoito leis, estatutos e ordenanças. Assim o decálogo é de caráter didático, visando a memorização, por parte do povo, dos princípios básicos que norteiam a conduta do povo eleito. Assim, temos princípios de conduta do homem para com Deus, e para com o seu próximo. Não foi sem razão que a tradição rabínica resumiu os dez mandamentos em dois (e neste aspecto, Cristo consentiu com eles), a saber:
Ame o Senhor, o seu Deus de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento. Este é o primeiro e maior mandamento. E o segundo é semelhante a ele: Ame o seu próximo como a si mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas (Mt 22. 37 - 40 NVI).
Note que Cristo diz que estes são os maiores mandamentos, e depois afirma que toda lei e os profetas dependem destes mandamentos. Paulo vai além explicando que: estes mandamentos: "Não adulterarás", "não matarás", "não furtarás", "não cobiçarás", e qualquer outro mandamento, todos se resumem neste preceito: "Ame o seu próximo como a si mesmo". O amor não pratica o mal contra o próximo. Portanto, o amor é o cumprimento da lei (Rm 13. 9, 10 NVI). No tocante a este texto, gosto da tradução da Bíblia de Jerusalém que diz: aquele que ama cumpriu plenamente a lei, visto que traduz melhor a expressão grega πληρωμα ουν νομου (pleroma oin nomon). Assim, vamos aos dez mandamentos.
Convém considerar que antes de ordenar o que o povo poderia, ou não fazer, Deus arroga para si o direito exclusivo sobre Israel. Eu sou o Senhor, o teu Deus, que te tirou do Egito, da terra da escravidão (Ex 20. 2 NVI). Como redentor do povo, ele tem direitos exclusivos sobre o mesmo, assim a adoração ao Senhor tem de ser restrita. Daí a ordem: Não terás outros deuses além de mim (Ex 20. 13 NVI). O segundo mandamento não é uma restrição á fabricação de imagem. Este é um ponto que os católicos percebem e exploram muito bem. O próprio Deus restringiu imagens dele, mas autorizou que se confeccionasse imagens de querubins. Indicando com isto que a essência do mandamento é que não se adore a nenhuma imagem, conforme entendemos da segunda edição da lei em que lemos:
No dia em que o Senhor lhes falou do meio do fogo em Horebe, vocês não viram forma alguma. Portanto, tenham muito cuidado, para que não se corrompam e não façam para si um ídolo, uma imagem de qualquer forma semelhante a homem ou mulher, ou a qualquer animal da terra ou a qualquer ave que voa no céu, ou a qualquer criatura que se move rente ao chão ou a qualquer peixe que vive nas águas debaixo da terra. E para que, ao erguerem os olhos ao céu e virem o sol, a lua e as estrelas, todos os corpos celestes, vocês não se desviem e se prostrem diante deles, e prestem culto àquilo que o Senhor, o seu Deus, distribuiu a todos os povos debaixo do céu (Dt 4. 15 - 19 NVI). 
Esta é base do segundo mandamento. Os evangélicos podem admirar uma escultura, e a arte em geral, podem ter consigo uma foto de uma pessoa querida, mas jamais poderão se prostrar diante de quaisquer destas formas de representação sem que com isto se comprometa a identidade evangélica e a integridade espiritual, visto que um mandamento está sendo violado. O terceiro envolve a questão da profanação com o nome de Deus na medida em que se vale do nome do mesmo em juramentos, com vistas a dar credibilidade à nossa palavra.  Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus, pois o Senhor não deixará impune quem tomar o seu nome em vão (Ex 20. 7 NVI).
O quarto mandamento é na verdade um memorial, afinal no lugar do famoso  não (heb. לֹֽא [lo]), vemos o verbo זָכֹ֛ור֩ (zakar), que aqui constitui-se como apelo à lembrança. A ideia de um dia separado para descanso, vai além da ausência de atividade laborativa, engloba a total confiança em Deus e o espaço para reflexão de que na verdade todas as coisas procedem dele. Ele é o criador e o mantenedor da vida.
A honra de pai e de mãe, do hebraico כַּבֵּ֥ד (kebed), vai bem além da obediência reverente, bem como do pudor, e da distinção para com os mesmos. Honrar aqui é manter, sustentar os mesmos em sua velhice, afinal naqueles idos tempos não havia previdência social. Assim, na velhice quando não mais podiam arar a terra, poderiam e deveriam ser amparados por seus filhos.
Os demais mandamentos implicam na honra que temos para com o próximo e tem no amor a motivação para a guarda dos mesmos. A lei passou por sucessivos resumos ao longo da progressão da revelação no Antigo e no Novo Testamento. No deuteronômio, guardar a lei é sinônimo de amar a Deus sobre todas as coisas (Dt 6. 5 - 12). Nos salmos a guarda da lei pode se sintetizada desta forma:
Quem poderá subir o monte do Senhor? Quem poderá entrar no seu Santo Lugar? Aquele que tem as mãos limpas e o coração puro, que não recorre aos ídolos nem jura por deuses falsos. Ele receberá bênçãos do Senhor, e Deus, o seu Salvador lhe fará justiça (Sl 24. 3 - 5 NVI).  
ser limpo de mãos, puro de coração, não se entregar á vaidade, isto é guardar a lei, na íntegra. Mas este texto trabalha a justiça a partir da ótica de relacionamento entre o homem e Deus. Miquéias, profeta que exerceu sua atividade no Reino norte, já traz a justiça de uma perspectiva que considera Deus e os homens. Ele mostrou a você, ó homem, o que é bom e o que o Senhor exige: Pratique a justiça, ame a fidelidade e ande humildemente com o seu Deus (Mq 6. 8 NVI). Em ambos os casos a demanda fica por conta de um coração puro.
 
CONCLUSÃO
 
Paulo desenvolveu um pensamento de que a justiça de Deus prenunciada pela lei e pelos profetas foi cumprida em Cristo nos corações dos que ao recebem. Embora nossa justiça não seja oriunda da lei, a mesma ainda permanece como parâmetro, ou como evidência de que fomos realmente salvos.
 
Em Cristo, Pr Marcelo Medeiros.

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